É tudo verdade?
Carlos Sussekind pai – do romancista de mesmo nome – manteve, durante anos, até a morte, um diário. Instalava-se todas as tardes na varanda do apartamento no Leme e registrava minuciosamente seu dia, na família e no trabalho.
O que era considerado por todos uma perda de tempo e um desperdício de talento. Os cadernos, comprados a cada ano na mesma papelaria do Centro, eram enfileirados na estante, ao alcance de um eventual leitor curioso.
Aparentemente, um confiável registro para a posteridade, um olhar atento sobre uma vida e uma cidade. Jurista renomado a quem não faltam senso de humor e escrita aguda, a opção pelo diário aponta para a não ficção, ou seja, a “verdade”.
O diário é, paradoxalmente, um gênero “secreto”, cujo único leitor seria quem escreve, e nesse sentido, livre de censura ou subterfúgios. Aos arrependidos, a destruição, em geral, pelo fogo.
Não é bem assim. Carlos Sussekind pai teve uma aventura extra conjugal com uma colega promotora – nenhuma palavra no diário. Um casamento feliz e equilibrado.
O diário é o melhor lugar para mentir.
O registro quotidiano, ainda que dos fatos mais prosaicos, nada mais é do que a tentativa (inútil) de driblar a morte e a fragmentação do tempo, de assegurar a concretude de nossos atos e percepções, como se o traduzido em palavras garantisse não apenas sua perenidade como sua veracidade.
“Ceci n´est pas une pipe” nos lembra Magritte. “Isto não é verdade” nos ensina o diário.
PINA COCO
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