Pina Coco

É tudo verdade?

Primas Pobres da Literatura
 

Joaquim Paiva

Diários de Joaquim Paiva
 

Sérgio Barcellos

Diário:
O que é, ou, mode d´emploi



Diário: O que é, ou, mode d´emploi
 

Os diários, em sua dimensão pessoal, tiveram sua origem na consolidação política e social da burguesia e, também, no desenvolvimento da vida urbana. Seria na dimensão das cidades que as famílias estabeleceriam espaços de privacidade dentro do próprio lar, favorecendo, dessa forma, a individualidade também no âmbito doméstico. Mais importante ainda, a privacidade seria uma condição material para pensar a intimidade dos membros da família e, no que nos interessa, seria a condição essencial para o surgimento de uma escrita pessoal privada. As condições de vida burguesa e urbana, somadas aos progressos da alfabetização das mulheres, no século dezenove, tornaram os diários pessoais uma prática predominantemente feminina.

Entretanto, práticas de escrita pessoal, em um contexto coletivo e comunal, preexistiram e contribuíram para a formação dos diários pessoais. Livros de assentamentos, livros de família, almanaques e diários de registros comunitários foram as contrapartidas coletivas a uma escrita pessoal, às vezes íntima e secreta. Fruto de uma atividade restrita aos homens, esses registros são comumente ofuscados pelo sucesso e pela curiosidade dos diários pessoais, secretos e íntimos do sujeito da modernidade. O diário, como é ainda comum hoje, seria o exercício da subjetividade, encerraria em si segredos e revelações, cuja leitura estaria restrita ao próprio indivíduo.

A prescrição da prática de manutenção de um diário pessoal, entre as mulheres do século dezenove, atendia a algumas urgências contextuais: diante da ausência de uma vida profissional, ou de um aprendizado profissional, restava às mulheres manterem-se dignas e ocupadas até o momento do casamento. O diário servia, assim, como prática de escrita, visando seu aprimoramento, em que se enfatizava uma correta conduta moral e social, através de um constante exame de consciência. Às vésperas do casamento, o diário era abandonado – não possuía mais alguma utilidade. A vida conjugal era considerada a maior inimiga da prática diarística. Entre nós, um exemplo valioso – e delicioso - é o diário de Alice Dayrel Caldeira Brant, ou Helena Morley, pseudônimo da autora de Minha Vida de Menina.

Embora não prescrito aos homens, os diários masculinos serviram, também no âmbito pessoal, a propósitos vários. Notadamente, como espaço de reflexão intelectual, política ou profissional, como os volumosos diários de ex-presidentes e de homens públicos confirmam. Haveria nos diários masculinos, ao contrário dos diários de mulheres, um grau de exibicionismo que atribui um tom picante, às vezes irreverente e sensual, ao lado de revelações por demais gráficas e detalhistas. Gilberto Freyre, em seu Tempo Morto e Outros Tempos, brinca com essa característica dos diários e faz revelações anedóticas de sua sexualidade em tenra idade.

O século vinte e um, com seus novos suportes engendrando novas práticas de escrita pessoal, estaria pondo em risco a natureza privada dos diários. Estaria, caso se pudesse afirmar que os blogs são diários na internet. No contexto dos estudos diarísticos, isso não se confirma, uma vez que os blogs têm como propósito subjacente o estabelecimento de uma sociabilidade que inexiste na prática do diário pessoal. Mas o diário não representa, como é comum se pensar, um exercício solitário, um diálogo quase excêntrico do sujeito consigo mesmo.

Um texto repetitivo, lacunar, alusivo

Em termos de sua forma, seus elementos constitutivos são também simples de identificar. Diários são compostos por entradas – cada unidade de texto, de registro diário – precedidas pela data. Algumas vezes, o diarista utiliza um cabeçalho, com local e data. Às vezes, encontramos uma referência ao diário mesmo como destinatário ou a um interlocutor imaginário: “Caro diário” ou “Querida Kitty”. Alguns diaristas encerram suas entradas com algumas fórmulas tais como: “Boa noite”, “Vete” ou “And so to bed!”. O conteúdo dos diários é tão variado como variadas são as pessoas que os mantêm. Alguns traços, porém, parecem perpassar todos os diários. O diário tem como ponto central a vida do indivíduo. É o que se encontra em torno dele que é matéria do diário: sua família, seus amigos, sua vida pessoal e profissional, os assuntos que discute e lê nos jornais e livros, os lugares aonde vai, etc. Diaristas não precisam se identificar para o seu diário, seria redundante. Muitos não sentem necessidade de explicar absolutamente nada, fazendo com que um eventual leitor se veja diante de um texto cuja referência externa, quando lhe é desconhecida, se torna valiosa para compreender o assunto tratado no texto. Os diários não comportam, como a prosa romanesca tradicional, um autorretrato do diarista. Diários tampouco conhecem um início: marca de uma narrativa ocidental tradicional, aristotélica, com início-meio-fim.

Em algumas palavras, diários são repetitivos, alusivos, lacunares. O que, então, os torna tão atraentes? A resposta depende do perfil do leitor interessado em diários, mas um aspecto permanece em todos os leitores: o desejo de ler uma narrativa pessoal que seja uma projeção, um reflexo, se não exato, bastante próximo da verdade íntima do sujeito que produz a narrativa. Queremos ler no diário aquilo que o diarista não diria a ninguém, mas somente ao seu amigo íntimo, seu confidente, o diário. Queremos encontrar no diário uma verdade, ainda que subjetiva e questionável.


SERGIO BARCELLOS