Pina Coco

É tudo verdade?

Primas Pobres da Literatura
 

Joaquim Paiva

Diários de Joaquim Paiva
 

Sérgio Barcellos

Diário:
O que é, ou, mode d´emploi



Primas Pobres da Literatura
 

Primas pobres da literatura, biografia e autobiografia só recentemente foram admitidas como tal, sendo codificadas e tornando-se objeto de análise, sobretudo graças a Philippe Lejeune. Também como escrito biográfico, mas de mais difícil acesso, fica o diário – que, por definição, é “secreto”.Se publicado, em geral o é após a morte – também em geral trágica e jovem – do diarista: os ícones seriam o Diário de Marie Bashkirtseff e o Diário de Anne Frank. Lejeune estuda diários de jovens francesas do século XIX, garimpados ao longo de um ano de viagens acadêmicas pelo país, em boa parte inéditos, escondidos em baús e porões; outros, com publicação feita pela família, como homenagem póstuma. Em um segundo tempo – 1988 – lança, através do reputado Magazine Littéraire, a continuação da pesquisa que encetara, no ano anterior, entre adolescentes colegiais e professores, convocando os leitores diaristas a darem seu testemunho. As respostas são publicadas com o título de Cher cahier... Um índice remissivo enumera e discrimina os tópicos tratados: o início do diário; o meio e o final; o suporte material; onde e quando escrever; a escrita; funções do diário; metáforas; conteúdo; outras práticas de escrita; a leitura do diário; destino póstumo do diário e problemas em geral, tal como a sinceridade, o narcisismo, o segredo, e outros.

Algumas questões nortearam o pesquisador: a escrita do diário está associada aos acontecimentos – ou seja, escreve-se quando tudo vai mal, ou, pelo contrário, quando vai bem? Trata-se de uma atividade neurótica ou de autoeducação e controle? Encoraja uma escrita descuidada ou serve de laboratório para um estilo pessoal? Pode ser realmente sincero e secreto?

As respostas atenuam o lugar comum que vê o diário associado à adolescência e ao sexo feminino: 48 respostas são publicadas, das quais 24 preferiram manter o anonimato.Todos são adultos, homens e mulheres.

A grande dificuldade de eleger a forma diarística como objeto de estudo é sua própria natureza, íntima e secreta. Diários publicados são destinados a um outro, a um leitor, o que faz com que um texto espontâneo passe por uma re-elaboração para tornar-se um produto de livraria. Autores publicam seus diários em vida: André Gide é o grande exemplo. Pais publicam diários de filhos mortos: Anne Franck (que escrevia com a intenção de publicar), e suas sucessivas edições, remanejadas pelo pai, assinala para a delicadeza e dificuldade da empreitada.

No entanto, com o surgimento de um novo e revolucionário suporte para a escrita, o computador, e à sua trela, um meio de comunicação múltiplo e instantâneo, a Internet, eis que o diário despe-se de seu sigilo e se torna público. Os blogs podem variar desde verdadeiros diários de adolescentes, muito semelhantes às agendas, uma espécie de objeto ready made, em que se alternam frases, colagens, fotos, souvenirs, música, a textos instigantes que abrem o debate. A novidade é não apenas destinar-se a leitores, mas também o diálogo com eles, o que, para o adolescente, equivale à afirmação de uma identidade ainda em formação.

Philippe Lejeune faz, mais uma vez, uma saudável pesquisa de campo: em 1998, procura saber se um diário é mantido/escrito da mesma forma tendo como suporte o computador: 66 respostas, das quais 27 estão publicadas em seu novo ensaio, Cher écran... A segunda etapa se desenrola em 1999, quando explora, durante um mês, os diários em língua francesa na Internet, cerca de uma centena. Em 2000 prolonga a pesquisa, e a inclui no mesmo volume. É preciso dizer que o diário na Internet é bastante comum entre os países anglo-saxões, e ainda pouco difundido na França, onde o próprio computador entra tardiamente e é visto com recalcitrância pela geração mais velha.

Aliás, diários são mais freqüentes em países de confissão protestante, seja pelo estímulo ao autoexame, seja pela ausência de um confessor direto, como no catolicismo.

No Brasil, segundo dados da revista Veja de 05 de junho de 2002, seriam, à época, 60 000 os adeptos de blogs. Adolescentes, adultos, meninos e meninas aderem ao diário virtual: “O blog serve para desabafar meus sentimentos e revelar meu estado de espírito” confessa uma blogueira, no melhor estilo do diário íntimo, mas agora com uma privacidade voluntariamente partilhada (e, portanto, supõe-se, filtrada).

Quanto a manter um diário no computador, são adeptos os que têm uma péssima caligrafia, em geral (caso do próprio Lejeune).O computador é visto como um companheiro, um gato, (animal fetiche dos escritores) que ronrona, uma luz e um pulsar muito semelhante ao de um coração, um interlocutor para as confidências. Ao inverso do caderno, aberto a qualquer momento e disponível, necessita de um tempo e um ritual para estar pronto a receber as frases.

A agilidade de recursos permite um diário espontâneo ao lado de outra versão mais trabalhada, em arquivos diferentes. Um disquete torna o diário transportável e passível de ser lido a qualquer momento.

Do outro lado das respostas estão aqueles que permanecem fiéis ao suporte papel: além de serem pessoas que amam papelaria, cadernos, lápis, canetas, têm um grande argumento a favor: o registro do momento, da emoção. A letra que se torna trêmula ou nervosa; a mancha de café ou de lágrimas, a folha desamassada e incorporada ao maço, o guardanapo de bar, são registros tão fortes do momento quanto as frases, a ativar a memória da releitura. Para eles, nada mais semelhante a uma folha impressa em Windows do que outra – e o diário é, por excelência, um registro pessoal, individual, íntimo e emocional.

O diário na Internet estudado por Lejeune não é um blog, fenômeno norte americano, mas um diário aberto a outros, que nele interagem. Forçosamente, é pouco íntimo, sobretudo em uma cultura na qual a barreira entre o público e o privado ainda é estrita. Seja para debater questões que atormentam, ou para fixar momentos da vida, ou ainda para formar um pequeno grupo de interlocutores / amigos, com a grande vantagem do anonimato e invisibilidade, o fato é que Lejeune constata a existência de uma pirâmide, em cuja base estão talvez milhões de cadernos manuscritos; no meio, o computador, talvez milhares de diários pessoais, e no topo, a Web, uns vinte diários, na França, lidos por centenas de internautas...

O diário, mais que quaisquer outras formas biográficas, fixa, em tela móvel, cada dia, cada acontecimento, banal ou inesperado, cuja soma irá compor uma identidade, uma memória. Disso bem sabem os organizadores do Archivio de Pieve Santo Stefano, cidadezinha a alguns quilômetros de Florença, a “cidade dos diários”. Começando por resgatar diários dos moradores, a busca estendeu-se por toda a Itália e, em 2003, aos italianos no exterior. Publicação dos melhores textos, arquivos, prêmios e uma semana dedicada aos diários ajudam a recuperar uma memória coletiva, através daquelas individuais. Outras pequenas cidades organizam seus arquivos de diários, na França (Fontenay aux Roses, perto de Lyon, onde funciona a Associação fundada por Lejeune), na Alemanha, na Finlândia.

Estimulado como prática pedagógica nos colégios religiosos femininos do século XIX, romance cujo final desconhecemos e não dominamos, o diário é uma tentativa de linearizar o tempo, fixando balizas de passado e futuro entre um perpétuo presente, do dia a dia, mas que, ao ser registrado, já se torna passado. Os dias têm começo e fim, a rotina das entradas dá uma (falsa) sensação de segurança, de domínio sobre o fugaz e o desconhecido.Sensação de sermos reais em um mundo igualmente real.



PINA COCO